Por Suely Caldas é jornalista e professora de Comunicação da PUC-Rio
Publicado em O Estado de São Paulo em 3/1/2010
A cotação do presidente Lulla está em alta na Europa. Escolhido o "Homem do Ano" pelos jornais Le Monde (francês) e El País (espanhol), o inglês Financial Times (FT) listou-o entre as 50 personalidades que moldaram a primeira década do século 21. Ao justificar a sua escolha, o jornal britânico tratou de dividir o sucesso de Lula com seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Sobre sua popularidade, destaca: "O que faz os brasileiros amarem Lula é a baixa inflação" - herança do Plano Real da era FHC. E lembra que, quando oposição, Lula criticou duramente as ações da política econômica do antecessor, "mas foi esperto o suficiente para mantê-las".
Faltou ao FT dizer que no Congresso, nos comícios, nas campanhas eleitorais, nos sindicatos e nas ruas Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT) trabalhavam para derrubar, uma a uma, as ações de política econômica que eles trataram de preservar quando chegaram ao governo. Quem viu Lula e o PT em campanha contra as privatizações, com xingamentos agressivos, não o imaginava dois anos depois desautorizando o ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, a tentar reestatizar a Vale. "Não quero que meu governo passe a imagem de que somos contra e vamos desfazer as privatizações", advertiu Lula em 2003.
Mas o FT está certo em cutucar Lula naquilo que ele jamais admitiu e, pior, nega quando fala a respeito. Por mais oposição que tenha praticado antes, nenhum líder político começa a governar seu país com atitudes de ruptura com o que encontrou. "Vamos mudar tudo que está aí", prometiam Lula e companheiros. A expressão não diz nada, é oca, vazia, não especifica o que vai mudar, mas é boa de marketing popular e péssima como mensagem de governo. Deu no que deu em 2002, com o dólar beirando R$ 4 e o risco País chegando a 3 mil pontos.
"Nunca antes na história deste país", continuou Lula depois que virou presidente. Arrogante, esquece que apenas deu continuidade àquilo que herdou. Ele costuma glorificar os avanços de seu governo na área social. Realmente o Bolsa-Família é um programa social bem-sucedido, elogiado por outros governantes, pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas Lula omite que o programa foi criado no governo anterior e que a sua mais genial inventividade - a estrutura de um cadastro das famílias de alcance nacional e o cartão bancário que eliminou a secular e corrupta intermediação dos políticos - foi concebida por uma equipe de economistas, entre eles Ricardo Paes de Barros, que os petistas rotulavam de tucanos neoliberais. Na época, o Instituto da Cidadania, ligado ao PT, apresentava ao País um esdrúxulo plano para eliminar a fome, com um fundo alimentado por uma taxa cobrada em gorjetas de restaurantes. Lula podia criticar a quantia de apenas R$ 15 que FHC dispensava às famílias por filho na escola e lembrar, com justiça, que sua gestão elevou o valor e ampliou o cadastro de famílias, mas não é ético tomar a si a autoria do programa, que não lhe pertence.
Ainda na série "nunca antes na história deste país", sua única concessão foi dirigida ao ditador João Baptista Figueiredo, ao afirmar que só o general construiu mais casas do que ele, mas omite e não reconhece um fato bem mais recente vivido na democracia: é o sistema de câmbio flutuante e metas de inflação, criado na gestão Armínio Fraga no Banco Central, e com sabedoria mantido por ele e Henrique Meirelles, que mantém a inflação baixinha e garante sua popularidade.
É justo constatar que o País progrediu no governo Lula. Ele e sua equipe de petistas demoraram a aprender, tropeçaram nas Parcerias Público-Privadas, tomaram decisões erradas quando tentavam inventar - caso do programa Meu Primeiro Emprego. E levaram o País ao retrocesso político ao tolerarem, não punirem e até incentivarem a corrupção, ao lotearem cargos técnicos com apadrinhados despreparados e mal-intencionados, ao interferirem politicamente em funções do Estado que existem para servir ao cidadão, e não aos interesses do governo. Não fizeram as reformas, na política diplomática não chegaram a contar vitórias e continuam errando no plano político-institucional.
Mas é legítimo reconhecer os méritos: a economia cresceu e milhares de empregos foram criados, a área social ganhou impulso, surpreendentemente o País saiu da crise antes do esperado e a última pesquisa do IBGE sobre o Produto Interno Bruto (PIB) trouxe a boa notícia: o investimento produtivo voltou e tudo indica que de forma sustentada. O futuro, portanto, é promissor e Lula ajudou a construí-lo. Mas não só ele. Ninguém é onipotente, muito menos quem tem responsabilidade de governar e preservar o que foi feito antes. O Brasil perdeu a década de 1980 inteira, sofrendo com uma inflação absurda que emperrava o progresso, impedia investimentos, concentrava a renda. Derrubar a inflação foi o primeiro passo para reverter esse quadro e começar a construir um novo País. E isso ocorreu com o Plano Real, em 1994, em pleno ano eleitoral e apesar da oposição de Lula e do PT, que decretavam vida curta a "este plano eleitoreiro".
Argentina - Ao contrário do Brasil, superar a crise não está fácil para a Argentina. É certo que foi afastado o fantasma da moratória (e todas as suas mazelas), que rondou o governo de Cristina Kirchner até meados de 2009, mas o acesso ao crédito internacional continua fechado e ajudando a alongar os efeitos da crise. Com a economia em recessão e a receita tributária em queda, o governo ampliou sua intervenção em negócios privados para buscar dinheiro e atenuar seu déficit fiscal, mas criou ambiente de insegurança e risco jurídico que causa fuga dos investimentos e impede a economia de decolar.
Sob intervenção há três anos, ninguém acredita nos indicadores econômicos do Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec). A previsão do governo de inflação entre 6% e 7% em 2010 é ignorada pelo mercado, que espera repetir os 15% de 2009. Fazer recuar a inflação a menos de dois dígitos, conseguir abrir as portas do crédito internacional e atrair investimentos são desafios que Cristina Kirchner vai enfrentar com dificuldades em 2010.
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