domingo, 24 de outubro de 2010

Fico sonhando com um cenário em que ambos os candidatos repudiariam a deriva religiosa do segundo turno


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por Diego Viana para o site AMÁLGAMA

Não espero conquistar a atenção de muita gente, mas insisto em sair da toca com algumas palavras de bom senso, já pedindo desculpas por me apresentar como a voz do bom senso. O que segue é uma exortação à militância tucana, àqueles pequenos pássaros de escassa penugem que ainda piam no ninho, desejosos de voltar ao poder e colocar em prática as ideias (isto é, as sobreviventes) de um partido fundado em meados de 1988 sob a égide da democracia e da modernização. Poderia ser um apelo a todos os níveis do partido, mas temo que os tucanos de alta plumagem, os cardeais, já não tenham volta. Então vou me dirigir somente à base.
Explico. Alguns nomes da lucidez nacional têm alertado para o perigo da introdução de uma agenda religiosa radical na política brasileira. Temos aí, ambos na Folha, os artigos de Jânio de Freitas e Vladimir Safatle – este último bastante assustado, e prenhe de razão, com a perspectiva de um Brasil dos aiatolás cristãos. Como Satafle, muita gente teme pelo futuro se a campanha continuar assim até o final e se o radicalismo religioso resolver cobrar a conta do governo no ano que vem. (E por que não cobraria?)
Também temo, é claro. Mas acho necessário acrescentar um detalhe. Sim, o futuro está em risco. Mas ele segue sendo a única coisa que pode ser salva. Os princípios republicanos estão a perigo no país e não é a primeira vez, tanto é que eles já foram suprimidos em mais de uma ocasião de nossa história. O que realmente se perde está no presente e sua relação com o futuro é que fará falta, muita falta, se o pior cenário se concretizar. Não estou querendo livrar a cara do PT, cuja carta recente, em que dobra os joelhos para o poder religioso, é triste e equivocada. Mas a conta do PSDB é infinitamente mais tétrica.
O PT, como eu disse, se dobrou. Já o PSDB se aniquilou, se negou. Abraçou voluptuosamente uma agenda deplorável e rasteira. Pior ainda, sem um gesto de hesitação, os líderes do partido incineraram e enterraram os princípios fundadores da legenda. Afinal, o PSDB não era um partido udenista. Como foi acabar assim? O PSDB não era um partido reacionário. Como foi acabar assim? O PSDB não era um partido populista, mas hoje reduziu sua campanha a promessas de aumento irresponsável do salário mínimo e evocações à fé mais banal. Como foi acabar assim? O PSDB não era um partido clientelista, mas ao se associar à versão suburbana do voto de cabresto, descambou para isso. Como foi acabar assim? Não há ódio ao adversário que o explique – e o ódio ao adversário já é um princípio indesejável. Não há desejo de vitória que o justifique. Não esqueçamos: depois do voto, vem a gestão. E que gestão se pode esperar de um partido que abdicou de sua identidade, como fizeram os líderes tucanos?
Uma coisa que se deve entender: o PT e o PSDB são partidos enraizados profundamente naquilo que se convencionou chamar de “Nova República”. São os dois principais partidos surgidos das cinzas da hecatombe militar, de que o país saiu mutilado, emburrecido e na bancarrota. Talvez sejam os únicos partidos verdadeiramente novos de alguma relevância: o PDT é o novo PTB, o PFL é a Arena, o PMDB continuou sendo ele mesmo e assim por diante. PT e PSDB, não. São partidos cujo significado é profundamente dependente dessa república. Esses dois partidos não fazem sentido, não existem como tais, sem a observação e a defesa rigorosa dos valores republicanos, recuperados no país com a constituinte de 1988.
Ou seja, é impossível que haja uma erosão dos valores republicanos no Brasil sem que haja, ao mesmo tempo, a derrocada dos dois partidos que mais se nutrem desses valores. Ao perguntar a sua adversária, no primeiro debate do segundo turno, se ela crê em Deus, José Serra não apenas incorporou Jânio Quadros (o PSDB, mais do que qualquer outro partido brasileiro, deveria estar ciente do mal que o espírito desse homem pode fazer ao país). Ele também deu uma estocada certeira no coração dos valores republicanos e, por extensão, no coração do PSDB. O PSDB não tem vocação para UDN, mas está coligado com um partido que tem. Cuidado, PSDB, para não ser fagocitado pelo PFL. José Serra se mostrou disposto a renunciar ao Estado laico em nome do poder. O partido está de acordo? Os militantes estão de acordo?
Chega de explicações, vamos à exortação. A militância tucana tem um dever moral inadiável. Existe uma única atitude que ela pode tomar se quiser salvar seu partido, antes que ele imploda e dê lugar a um cripto-PFL, suspirando de saudades por Carlos Lacerda e Magalhães Pinto. Os militantes do PSDB têm necessariamente de vir a público para, em uníssono, repudiar com veemência a deriva em que se meteram a direção do partido e seu candidato. Os verdadeiros tucanos estarão definitivamente fora do jogo político se falharem em dar um “Não” inapelável às inserções de televisão com fetos e um discurso fascistóide, a que se entregou a campanha de Serra desde o início do mês. Mas isso é só um exemplo: o “Não” tem de ser coextensivo à instrumentalização da festa da padroeira, em Aparecida, dia 12 agora. “Não” à manipulação midiática, “Não” aos santinhos com frases bíblicas, “Não” aos panfletos apócrifos, “Não” à tendência de descambar para aquilo que de mais nefasto já produziu a política brasileira, o lacerdismo que desaguou no golpe de 64 (e não estou sugerindo que caminhamos para outro golpe). O episódio Regina Duarte de 2002 deveria ser vergonhoso o suficiente para o tucano histórico, mas nada é tão ruim que não possa piorar. Neste ano, estamos muito pior.
Amigo tucano que leu até aqui: este é teu dever moral. Exigirá coragem, certamente, e desprendimento. Mas isso vale para qualquer dever moral. Falhando com esse dever, você deixará claro que o PSDB está morto pelas próprias mãos. É possível já o esteja há tempos. Lula se vangloria de provocar a extinção do PFL, mas talvez a verdade seja que o PFL contaminou o PSDB. Algo assim como se a Arena cooptasse o MDB e a ditadura se perpetuasse. Nada mais desastroso para a república brasileira.
“É preciso vencer a eleição”, argumentará talvez o amigo tucano. Vencer a eleição? Que vitória é essa, em que o exército triunfante é aniquilado? Não há mais vitória possível nesta eleição, se para isso for necessário cobrir-se de ignomínia, como tem ocorrido. Um eventual José Serra vitorioso não teria meios de governar, porque é impossível governar sem seu próprio partido. Ora, por enquanto o PSDB é o partido de José Serra, mas, a continuar assim, não haverá mais verdadeiro PSDB e só sobrará a neo-UDN nas mãos do eventual futuro presidente. É esse o governo que o militante tucano quer encabeçar?
“Mas e se perdermos a eleição de novo?!”, exclamará mais uma vez o mesmo amigo tucano. Talvez seja essa a única salvação para o partido. Então será possível deixar enfim para trás os anos 90, retomar os princípios fundadores, repensar o país a partir de suas condições atuais, superar o discurso pretejado de louvor ao Plano Real (que é de 94, e estamos em 2010), reapropriar-se da defesa de valores republicanos, desenvolver propostas modernizadoras para o país… O PSDB, não custa lembrar, é o partido de Franco Montoro e Mário Covas, muito mais do que de Sérgio Guerra e Arthur Virgílio. Cito aqui dois homens mortos, mas é para deixar claro que a morte dos homens não precisa implicar a morte do partido. Amigo tucano, tome em mãos o que é seu, rejeite o que pode aniquilá-lo. Erga-se contra aquilo que destrói por dentro seu partido. Não, essa campanha que tenta colocar José Serra no Planalto não é uma campanha do PSDB! Ou então o PSDB já não existe.
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PS: Fico sonhando com um cenário em que ambos os candidatos repudiariam a deriva religiosa do segundo turno, recusariam em definitivo o apoio de grupos fundamentalistas que exigem dos dois partidos a supressão de seus próprios princípios de base (que são, não custa lembrar mais uma vez, democráticos e modernizadores), e fariam uma eleição em nome do Brasil, não de nosso inconsciente obscurantista. Sei que é delírio meu. Sei que ambos perderiam muitos votos, mas a vida não se resume em receber votos. E, de toda forma, a esta altura temos apenas dois candidatos para escolher, e o peso do radicalismo religioso deveria cair, em vez de aumentar.

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