.Um texto muito interessante sobre a paranóia americana, colaboração do N com Y.AMARREM AS CUECAS - ISSO NÃO É UMA EMERGÊNCIA NACIONAL
5/2/2010, Tom Engelhardt, TomDispatch Permitam-me pôr sob perspectiva racional a vida que os norte-americanos estamos vivendo na Era do Terror. A verdade é que não precisamos fugir no primeiro avião para qualquer lugar longe daqui; nem para o Iêmen.
Em 2008, 14.180 norte-americanos morreram assassinados, segundo o FBI. No mesmo ano, houve 34.017 acidentes de carro com vítimas fatais nos EUA. E o Serviço Central dos Bombeiros dos EUA informa que 3.320 morreram em incêndios. Mais de 11 mil norte-americanos morreram de gripe suína, entre abril e meados de dezembro de 2009, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças; em média, espantosos 443.600 norte-americanos morreram de doenças associadas ao cigarro, segundo a Sociedade Norte-americana contra o Câncer; 5 mil norte-americanos morrem anualmente por ingestão de alimentos contaminados; estima-se que 1.760 crianças morreram por maus-tratos ou abandono em 2007; e no próximo ano morrerão 560 norte-americanos por causas associadas às condições climáticas , segundo o Serviço Nacional de Meteorologia, sendo 126 por causa de tornados, 67 por causa de anormalidade nas marés, 58 em enchentes, 27 serão fulminados por raios, 27 morrerão em avalanches e 1 morrerá por contato com poeira tóxica.
Quanto a acidentes aéreos, nenhum norte-americano morreu em acidente com aeronave norte-americana nem em 2007 nem em 2008, apesar dos 1,5 bilhão de passageiros transportados. Em 2009, é claro, aviões despencaram dos céus e pessoas morreram. Em junho, por exemplo, a meio caminho ente Rio de Janeiro e Paris, um avião desapareceu por causa do mau tempo sobre o Atlântico; morreram 226. O vôo 3407 de empresa regional norte-americana caiu sobre uma casa perto de Buffalo, New York, em fevereiro daquele ano, matando 50 – foi o primeiro acidente em voo comercial nos EUA desde agosto de 2006. E em janeiro de 2009, o voo 1549 da US Airways, atacado por um bando de pássaros, conseguiu fazer brilhante pouso no rio Hudson em New York e salvaram-se todos. Em nenhum desses anos qualqu er avião caiu por ação de terroristas, embora em 2007 dois terroristas tenham enfiado um Jeep Cherokee carregado com tanques de gás propano no terminal do Aeroporto Internacional de Glasgow; ninguém morreu.
O hoje infame voo 253 da Northwest Airlines, no qual voavam Umar Farouk Abdulmutallab e suas cuecas carregadas rumo a Detroit no dia de Natal de 2009 levava 290 passageiros e tripulação; todos sobreviveram. Se o atrapalhado Abdulmutallab tivesse tido sucesso, o número de mortos não superaria os 324 que morreram em acidentes de carro só em Nevada em 2008; e nem a detonação de quatro voos 253s por ação de terroristas superaria o número de mortos no trânsito no estado de New York em 2008, espantosos 1.231.341 (dos quais 51 a mais que o número de passageiros do voo 253 estavam completamente embriagados ao morrer ou matar).
Se o nigeriano de 23 anos tivesse conseguido armar sua bomba, seria um pesadelo para os passageiros a bordo e uma tragédia para seus parentes e amigos. Implicaria questão de segurança e proteção ao voo com a qual seria preciso trabalhar. Mas não criaria situação de emergência nacional, nem geraria crise da segurança dos EUA. Seria preciso mais que um avião explodido em voo, evento que vez ou outra acontece sem qualquer intervenção de terroristas.
E aconteceu outra coisa muito estranha: em função de fato que não aconteceu no voo 253, a imprensa de repetição, que opera 24 horas/dia, sete dias por semana, enlouqueceu completamente no dia 24 de dezembro. A cobertura do atentado fracassado e suas ramificações só fez aumentar sem parar durante duas semanas inteiras depois do incidente, até que o assunto dominou completamente todo o espectro da informação nos EUA, segundo pesquisa “Projeto para a Excelência em Jornalismo” do Pew Research Center. Imediatamente depois do Natal, mais de metade de todos os novos links em blogs eram comentários do ‘ocorrido’ (que não ocorreu) no voo 253.
Ao mesmo tempo, a máquina de propaganda (chamada “crítica”) do Partido Republicano (e todo o universo de imprensa que orbita em torno dela) só falou da “fraqueza” do governo Obama na luta contra o terror; o sistema global de transporte aéreo consumiu milhões de dólares em novas tecnologias que, se já estivessem operantes, não teriam detectado a cueca-bomba; o complexo industrial de segurança pátrio viveu dias de glória; e o medo, essa adrenalina fermentada no inferno, foi injetada em super overdoses no American way of life.
Consideradas as notícias veiculadas pela imprensa, ninguém jamais ficará sabendo que os habitantes dos EUA vivem sob risco praticamente igual a zero de sofrer qualquer tipo de ataque terrorista; mas enfrentam risco mortal diário crescente cada vez que se dirigem ao shopping center; ou que a cerveja, o cigarro, a bactéria E. coli, o fogo, o abuso doméstico contra mulheres e crianças, os raios, a chuva, as marés e coisa-e-tal são temas sobre os quais todos deveriam preocupar-se mais ativamente, em relação aos quais todos bem poderiam tratar de alterar a própria atitude ou, mesmo, dispor-se a investir mais dinheiro.
Terrorismo, façam-me o favor, não é problema nos EUA.
Os poucos norte-americanos que, desde 2001, morreram por causa que se poderia definir como ataque terrorista contra os EUA – sejam os 13 mortos em Fort Hood ou o soldado assassinado na calçada de um centro de recrutamento em Little Rock, Arkansas – são poucos, se comparados aos 32 mortos assassinados na matança de 2007 na Virginia Tech University; para não falar dos trabalhadores e desempregados suicidas. Desde 11/9, o terror nos EUA só matou mais que tubarões; perde em todas as demais estatísticas.
Desde a catástrofe econômica de 2008, o terror já perde feio para o número de mortes violentas que se explicam como reação ao desemprego, aos despejos, à impossibilidade de pagar o aluguel ou de alimentar a família.
São números que a imprensa não divulga, em país tão perversamente convulsionado por – e que parece jamais se fartar de – fantasias e delírios sobre estar sitiado por terroristas.
Medo & Co.
Os ataques de 11/9/2001, que foram mostrados com tintas de apocalipse, trouxeram o medo do terrorismo para dentro dos quartos de dormir dos norte-americanos, pelas telas dos televisores.
Esse medo foi usado com impressionante eficácia pelo governo Bush, que codificou o terror conforme seus específicos interesses. Uma versão doméstica da operação “Choque e Horror” – os americanos foram realmente chocados e horrorizados pelo 11/9 – ajudou a empurrar os EUA para duas guerras e duas ocupações desastradas, guerras e ocupação que continuam em andamento, e para a “Guerra Global contra o Terror” de George W. Bush, expressão que é hoje proibida em Washington, por mais que a “guerra escolhida” prossiga a pleno vapor, sem data para terminar.
Hoje, qualquer ataque terrorista possível ou real, qualquer ameaça, por falsa, amadorística, mal executada ou sem qualquer resultado, põe os EUA em estado de pânico incontrolável, alarme nacional, e parece sempre contribuir para aumentar os poderes da presidência imperial, ameaçando inaugurar novos “fronts” na guerra que hoje não tem nome nem controle e continua a se globalizar. O último desses “fronts” é, é claro, o Iêmen, graças em parte ao jovem nigeriano que foi evidentemente armado com explosivos por organização nigeriana de alguns poucos militantes e que atende pelo nome de “al-Qaeda na Península Arábica”.
O medo do terrorismo já está, hoje, institucionalizado na sociedade dos EUA – literalmente convertido em instituição –, por mais que a coisa de que tantos têm medo não exista na escala dos problemas humanos que os EUA enfrentamos. Para os que se lembrem das ficções da Guerra Fria, o terrorismo, em 2010, nos EUA, é espectro idêntico à SPECTRE.
O medo está encarnado numa palavra que, há pouco tempo, era considerada não-americana e, mesmo, antiamericana, sempre associada à Rússia Soviética ou à Alemanha nazista: “homeland” [aprox. “pátria-mãe”]. A palavra já substituiu “country” [aprox. “país”] e “nation”, na linguagem dos cria-terrores.
Em 2002, “homeland”, palavra carregada de terror, ganhou até sua própria agência nacional: o Department of Homeland Security [Departamento Nacional de Segurança da Pátria], espécie de segundo departamento de Defesa dos EUA, com orçamento, para 2010, de $39,4 bilhões (o gasto total previsto no orçamento de 2010 para a “segurança da pátria” nos EUA chega a $70,2 bilhões).
Em torno desse departamento de defesa “da pátria”, cresceu, praticamente sem que ninguém noticie, um complexo de segurança “da pátria”, com seus próprios interesses, negócios, empresas, associações e lobbyistas (entre os quais há magotes de ex-políticos, ex-burocratas e jornalistas a serviço de ex-presidentes).
Como resultado, mais de oito anos depois do 11/9, manifesta-se na sociedade norte-americana um estado mental de catatonia, que se pode descrever como resultado bem-sucedido do trabalho de uma grande empresa: Medo & Co.
Medo & Co. não nasceu do nada. Vários fatores e agentes operaram em conjunto para criá-la. Esses fatores e agentes continuam a trabalhar para que não faltem grandes doses de medo em circulação no corpo político e social nos EUA. Dentre esses fatores e agentes destacam-se:
– Presidência imperial: O governo Bush usou o medo não só para promover suas guerras e sua Guerra Global ao Terror, mas também para livrar de inúmeras restrições o presidente-imperial-comandante-em-chefe. Os perigos do terror e da al-Qaeda, tornaram-se espécie de coringa para autorizar toda a espécie de violência, inclusive sequestro (“prisão sob condições excepcionais”), prisões secretas e tortura, que passaram a ser vias consideradas normais no subconsciente dos norte-americanos; e a presidência ficou liberada, como o secretário de Defesa Donald Rumsfeld e outros costumavam dizer, para “tirar as luvas”.
Continua tudo exatamente assim no governo Obama; a presidência imperial parece até ter ganhado novo fôlego. Recentemente, por exemplo, ficamos sabendo que, sob a pressão do incidente no voo 253, o governo Obama revalidou decisão típica do governo Bush, segundo a qual o presidente, sob determinadas condições, tem competência para mandar matar cidadão norte-americano em território estrangeiro (o clérigo islâmico nascido no Novo México Anwar Aulaqi, ligado aos planejadores do 11/9; o matador do Fort Hood; e Abdulmutallab.) É invenção do governo Bush. Hoje, parece, o presidente Democrata dá sinais de querer manter aberta a mesma porta, também para sua serventia.
A situação da imprensa de repetição 24 horas/dia, sete dias por semana: O ‘terror’ merece hoje cobertura que as televisões de repetição 24 horas/dia, sete dias por semana reservavam exclusivamente para a morte de presidentes (como no assassinato de John F. Kennedy) e eventos de relevância para todo o país.
Mas, a partir de 1994, a mídia passou a tratar como se fossem todos igualmente importantes, qualquer evento bizarro, sensacionalista, que envolvesse, por indiretamente que fosse, qualquer celebridade em posição suficientemente anormal para fazer olhos e ouvidos grudarem à televisão. Em junho daquele ano, houve a infame perseguição a O.J. Simpson, em carro em baixa velocidade, por Orange County, seguido por mais de 20 helicópteros novos, enquanto 96 milhões de telespectadores sintonizavam os televisores e milhares congestionavam as avenidas para assistir ‘ao vivo’. Depois daquele dia, ninguém mais olhou para dentro de coisa alguma. Claro. Em mundo no qual as empresas desativam sucursais e fazem secar redações, com demissão em massa de repórteres, em que os grande s jornais perdem anunciantes todos os dias, é obviamente melhor negócio que todos se concentrem ao mesmo tempo no mesmo ‘evento’.
Essas energias de repetição, 24 horas/dia, sete dias por semana, são hoje concentradas e regularmente dirigidas para alimentar o medo do terrorismo, com divulgação de tudo que faça aumentar o medo, como, por exemplo, o não-fato ocorrido no voo 253.
– A máquina de propaganda do Partido Republicano e a imprensa da qual a máquina se alimenta: Antigamente, nem os mais bem-sucedidos governos Republicanos tinham máquina de propaganda tão eficiente e azeitada quanto têm hoje. O governo Nixon, na era Vietnã, perseguiu furiosamente o New York Times (tão furiosamente que, penso eu, o jornal foi praticamente chantageado e forçado a inaugurar a primeira página só de colunistas ligados ao governo; foi assim que William Safire ganhou espaço no jornal). À altura do governo George W. Bush, já praticamente não havia qualquer resistência. The Times e jornalões assemelhados tinham o único dever de não atrapalhar, ou eram sumariamente cortados do circuito, porque, do rádio às televisões, com publicidade e anunciantes, os Republicanos então já tinham seu próprio megafone montado e à mão.
Hoje, a imprensa é máquina já completamente ocupada por políticos e ex-políticos, editores, blogueiros, ‘especialistas’ militares, jornalistas alugados e todos os tipos de oportunistas, porque todas essas categorias têm tendência a misturar-se e confundir-se. O resultado é uma rede homogênea de promoção publicitária e barulho.
Essa rede é capaz de manter-se ativa sem qualquer tipo de notícia a noticiar, até que algum ‘tema’ – e nada melhor, como ‘tema’, que o ‘terrorismo’ e a fraqueza dos Democratas ante os ‘terroristas’ – possa ser inventado e, depois, repetido até a exaustão. Esse é o modo pelo qual qualquer pseudo atentado, por ridículo que seja, aparece ao mesmo tempo em todas as manchetes e, muito rapidamente, se implanta no inconsciente do público. Essa rede mantém em permanente circulação todos os tipos de fantasias sobre futuros ataques terroristas apocalípticos com bombas atômicas e outras armas de destruição em massa. Em todos esses casos, é claro, a rede do medo é auxiliada por uma coorte de jornalistas, ‘especialistas’, ‘âncoras’ e repórteres t ambém da ala mais liberal da mesma enfermaria do mesmo hospício.
– Democratas que não vêem a própria importância... e têm medo: É espantoso que o mais inteligente e mais letrado presidente que os EUA elegem em muitos anos não tenha encontrado um modo de aparecer ante o povo dos EUA, depois de o voo 253 estar pousado e em segurança, para dizer que todos se acalmassem.
Obama, de fato, não encontrou nem uma frase inteligente para dizer aos norte-americanos sobre o tal ‘evento’ das cuecas explosivas. Evidentemente não disse que os norte-americanos bem fariam se se preocupassem menos com terroristas e mais com evitar o pit-stop no bar, para ‘uma cervejinha’, antes de chegar a casa. Nada disso.
O governo Obama, tão abjeta quanto unanimemente, só fez repetir que aplicaria ainda mais esforço e dinheiro para livrar os EUA do “terrorismo aéreo”. E que, para tanto, estava criando uma nova frente da Guerra Global ao Terror no… Iêmen! Que, portanto, empregaria mais conselheiros e gastaria mais dinheiro. Depois, quando nem assim conseguiu calar os críticos, “recuou”, como escreveu o New York Times, e declarou que “estamos lidando com suspeitos de práticas terroristas exatamente como o governo anterior” (?!).
É espantoso que um governo Democrata veja algum tipo de melhor ‘segurança’ ao agir como governos Republicanos; que Obama esteja ‘avançando’ na trilha aberta por George W. Bush. É o medo. O medo provoca reações irracionais, incompreensíveis.
De fato, o medo já está tão institucionalizado na alta cúpula do governo dos EUA, quanto nas camadas mais populares da sociedade. O medo é geral.
Um 11/9 que nunca termina
O medo consegue reordenar os mundos humanos. É óbvio que hoje um pequeno número de fanáticos determinados, quase absolutamente impedidos de pisar em território dos EUA, já conseguiram criar e manter operante essa poderosíssima Medo & Co. O que essa máquina de medo produz é o contraponto perfeito de “O mundo visto da 9ª. Avenida”, charmosa capa de Saul Steinberg para a revista New Yorker[1].
O mundo que se vê “da 9ª. Avenida” ou “dos canais de televisão” que só reproduzem notícias da AL-Qaeda é, nos dois casos, visão fantasmagórica. Nenhuma proporção realista, nenhuma forma humana; nesses contextos, todas as decisões são estúpidas, adotadas por vias e razões estúpidas. As pessoas vão-se tornando incapazes de separar o que importa e o que não importa; o primário, do secundário. Em uma palavra, todos se tornam manipuláveis.
Assim vivemos nos EUA hoje. Há quem se pergunte pelo impacto que teria um segundo ataque semelhante ao do 11/9 na consciência dos norte-americanos. O que ninguém parece ver é que o terror daquele evento já foi multiplicado por mil.
Vivemos hoje como se já tivéssemos sofrido 4, 5, meia dúzia de ataques iguais ao 11/9. Sofremos como se já nos tivessem atacado. Trememos de medo. Vivemos apavorados.
Portanto, fica aqui esse conselho: da próxima vez que acontecer outro voo 253, quando a imprensa entrar no modo 24 horas/dia, sete dias por semana de “estamos sendo atacados” e “periclita a segurança da pátria”; quando todos os canais de televisão noticiarem que estamos sob “alerta vermelho”; quando o presidente Obama declarar, pensando só em defender-se ele mesmo, que está fazendo extamente o que Bush já fez e faria (?!); quando os lobbyistas da “segurança da pátria” puserem-se a pedir mais dinheiro, mais dinheiro para comprar mais tecnologia, mais tecnologia, apesar de nada estar acontecendo... pense nos muitos que dirigem embriagados, nos que lucram com a venda de bebida e cigarros, pense até nos surfista s atacados por tubarões e grite: “Amarrem as cuecas! Os EUA não estamos sendo atacados!”