Duas entrevista com Daniel Dennett, filósofo e escritor. Uma para o Der Spiegel e outra para o Jornal Zero Hora de Porto Alegre em 01/05/2010. Vários de seus livros ainda não foram publicados no Brasil.
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Para a Der Spiegel
Tradução do blog Naturalmente
Por ocasião do ciclo de conferências na Culturgest dedicadas ao tema “Evolução e Criacionismo – Uma relação impossível”, o Naturalmente associa-se ao debate publicando uma série de posts acerca da mesma temática. Naturalmente, promovendo uma visão mais científica e naturalista. Naturalmente, procurando desmistificar a inanidade criacionista e a sua vertente mais sofisticada do “desenho inteligente”. Desde logo, apresentando aqui uma entrevista de Daniel Dennett ao Der Spiegel por alturas do lançamento do seu último livro “Breaking the Spell”, em 2006. Continua, naturalmente, pertinente e actual. Com os nossos agradecimentos a este blog brasileiro, que se deu ao trabalho de a traduzir do alemão. Apenas lhe dei uns retoques, adaptando-a para português europeu. Merece leitura atenta:
Der Spiegel – Professor Dennett, mais de 120 milhões de norte-americanos acreditam que Adão foi criado por Deus há dez mil anos, a partir do barro, e que Eva foi feita com a costela do seu companheiro. Conhece pessoalmente algum desses 120 milhões de indivíduos?
Daniel Dennett – Sim. Mas os criacionistas geralmente não se interessam em falar sobre isso. Aqueles que são realmente entusiastas do desenho inteligente, no entanto, falam sobre o assunto incansavelmente. E o que eu aprendi é que eles estão cheios de desinformações. Mas encontraram essas desinformações em fontes muito plausíveis. Não é apenas o pastor que lhes ensina essas coisas. Eles compram livros que são publicados por editoras famosas. Ou acedem a sites da Internet e vêem propagandas bem elaboradas, publicadas pelo Discovery Institute, em Seattle, que é financiado pela direita religiosa.
Spiegel – No centro do debate está a ideia da evolução. Por que é que a evolução parece provocar muito mais oposição do que qualquer outra teoria científica, como o Big Bang e a mecânica quântica?
Dennett – Creio que é porque a evolução conduz ao cerne da descoberta mais perturbadora da ciência nas últimas centenas de anos. Ela contesta uma das ideias mais antigas que possuímos, talvez mais antiga até que a nossa espécie.
Spiegel – Que ideia é essa, exactamente?
Dennett – É a ideia de que é necessário algo de grandioso, especial e inteligente para a criação de uma coisa menor. Eu chamo isso de teoria da ordem descendente da criação. Ninguém jamais verá uma lança fazendo um fabricador de lanças. Tão pouco verá uma ferradura criando um ferreiro. Nem um vaso de cerâmica gerando um ceramista. As coisas ocorrem sempre na ordem inversa, e isto é tão óbvio que simplesmente parece ser uma lei universal.
Spiegel – Você acredita que essa ideia já estava presente entre os macacos?
Dennett – Talvez entre o Homo habilis, o “faz-tudo”, que começou a fabricar instrumentos de pedra há cerca de dois milhões de anos atrás. Eles tinham a sensação de serem mais perfeitos do que os seus artefactos. Assim, a noção de um criador que é mais perfeito do que as coisas que cria é, acredito, uma ideia profundamente intuitiva. É exactamente a esta ideia que os defensores do desenho inteligente se referem quando perguntam: “Você já alguma vez viu uma construção sem construtores, ou uma pintura sem um pintor?”. Esse raciocínio é algo que capta esta ideia profundamente intuitiva de que jamais se obtém um desenho gratuitamente.
Spiegel – É um argumento teológico antigo…
Dennett – … Que Darwin refuta completamente com a sua teoria da selecção natural. E ele demonstra que não. Não só é possível que se obtenham desenhos a partir de coisas não desenhadas, como também pode haver a evolução de desenhadores a partir dessas categorias não desenhadas. No final temos escritores, poetas, artistas, engenheiros e outros projectistas de coisas, outros criadores – que são frutos bastante recentes da árvore da vida. E isso desafia a ideia popular de que a vida possui um sentido.
Spiegel – Até mesmo o espírito dos seres humanos – a sua alma – é produzida desta forma?
Dennett – Sim. Como uma forma de vida multicelular e móvel, nós precisamos de uma mente, já que temos que perceber para onde estamos a ir. Necessitamos de um sistema nervoso capaz de extrair rapidamente informações do mundo, de refinar essas informações e de fazer uso delas com presteza a fim de que elas guiem o nosso comportamento. O problema básico de todo o animal é identificar aquilo de que necessitam, evitar tudo o que possa feri-los, e agir dessa forma mais rapidamente do que os elementos antagónicos. Darwin compreendeu esta lei, e entendeu que este desenvolvimento vinha ocorrendo havia centenas de milhões de anos, produzindo ainda mais mentes andróides.
Spiegel – Mas, mesmo assim, algo fora do comum ocorreu quando os humanos surgiram.
Dennett – De facto. Os seres humanos descobriram a linguagem – uma aceleração explosiva dos poderes das mentes. Porque a partir disso foi possível aprender não apenas a partir da própria experiência do indivíduo, mas também de forma indirecta, com base na experiência de outros. Aprender com pessoas que o indivíduo jamais conheceu. Com ancestrais mortos há muito tempo. E a própria cultura humana transformou-se numa força evolucionária profunda. É isto o que nos confere um horizonte epistemológico que é muitíssimo mais vasto do que o de qualquer outra espécie. Somos a única espécie cujos indivíduos sabem quem são, que sabem que evoluíram. As nossas músicas, a nossa arte, os nossos livros e as nossas crenças religiosas são, todos eles, em última instância, um produto dos algoritmos evolucionários. Alguns acham esse fato fascinante. Outros o acham deprimente.
Spiegel – Em nenhum local a evolução se torna mais evidente do que no código do DNA. Não obstante, aqueles que crêem no desenho inteligente vêm menos problemas no código do DNA do que nas ideias de Darwin. Porquê?
Dennett – Eu não sei, já que a mim parece que a melhor evidência que temos da veracidade da teoria de Darwin é aquela que surge a cada dia da bioinformática, do entendimento do código do DNA. Os críticos do darwinismo simplesmente não querem encarar o facto de que moléculas, enzimas e proteínas conduziram ao pensamento. Sim, nós possuímos uma alma, mas ela é composta de vários robôs minúsculos.
Spiegel – Não acha que seja possível deixar a vida a cargo dos biólogos, mas permitir que a religião se encarregue da questão da alma?
Dennett – Era isso que o papa João Paulo II exigia quando lançou a sua muito citada encíclica, na qual afirma que a evolução é um facto, frisando, entretanto: excepto no que respeita à questão da alma humana. Isso pode ter deixado algumas pessoas satisfeitas, mas é algo simplesmente falso. Seria tão falso como afirmar: os nossos corpos são feitos de material biológico, excepto, é claro, o pâncreas. O cérebro não é um tecido mais maravilhoso do que os pulmões ou o fígado. É apenas um tecido.
Spiegel – As ideias de Darwin foram utilizadas de forma errónea por racistas e eugenistas. Seria este também um dos motivos pelo qual o darwinismo é tão vigorosamente atacado?
Dennett – Sim. Creio que a forma mais gentil de explicar isso é dizendo que a ideia darwiniana é muito simples – dá para explicá-la a alguém num minuto. Mas, por este mesmo motivo, ela é também extremamente vulnerável a caricaturas e a usos indevidos. Eu ensino aos meus alunos de forma muito paciente as bases da teoria evolucionária, e depois tenho que retornar ao tópico e esclarecer os mal entendidos, já que eles se entusiasmam demasiado com a teoria e acabam tendo ideias erradas. O darwinismo é um doce para a mente. Ele é delicioso. Mas o facto é que o excesso de doces pode distrair-nos, fazendo com que deixemos de nos concentrar na verdade. E isso pode ser utilizado por indivíduos racistas ou sexistas. Portanto, temos que praticar constantemente uma espécie de higiene intelectual.
Spiegel – Parece que tudo – incluindo o adultério, a violação e o assassinato – está a ser actualmente analisado à luz da teoria da evolução. Como é que se separa a pesquisa séria dos disparates?
Dennett – É preciso que sejamos colectores meticulosos dos factos relevantes. E temos que organizar esses factos de tal maneira que contemos com uma hipótese testável, que possa ser realmente confirmada ou rejeitada. Foi isso o que Darwin fez.
Spiegel – O seu colega Michael Ruse acusou-o de ter saído do campo da ciência e entrado no da ciência social e da religião com as suas teorias. Chegou até a afirmar que, ao proceder dessa forma, você estaria inadvertidamente a ajudar o movimento que defende o desenho inteligente.
Dennett – Michael está apenas tentando dar às implicações das descobertas de Darwin um enfoque suave, e assegurar às pessoas que não existe tanto conflito assim entre o ponto de vista da biologia evolucionária e as formas tradicionais de pensamento.
Spiegel – E quanto às acusações de que você estaria ajudando a teoria do desenho inteligente?
Dennett – Provavelmente existe um elemento de verdade nisto. Eu acabei de escrever um livro no qual olho para a religião por intermédio do prisma da biologia evolucionária. Creio que podemos, devemos, e até mesmo que temos que seguir essa rota. Outros dizem que não. Que devemos manter-nos afastados de certas áreas. Que não se pode permitir que a teoria da evolução chegue perto das ciências sociais. Creio que este é um conselho terrível. A ideia de que devemos proteger as ciências sociais e a humanidade do pensamento evolucionário é uma receita para o desastre.
Spiegel – Porquê?
Dennett – Eu daria a Darwin a medalha de ouro pela melhor ideia que alguém já teve. Ela unifica o mundo dos significados, dos objectivos, das metas e da liberdade com o mundo da ciência, com o mundo das ciências físicas. Quero dizer, nós falamos sobre a grande lacuna entre a ciência social e a ciência natural. O que preenche esta lacuna? Darwin, ao mostrar-nos como objectivo, desenho e sentido podem surgir da falta de sentido algum, a partir da simples matéria bruta.
Spiegel – O darwinismo está em acção todas as vezes que algo de novo é criado? Até mesmo durante a criação do universo, por exemplo?
Dennett – É pelo menos interessante constatar que ideias quase-darwinistas ou pseudo-darwinistas também são populares na física. Eles postulam uma enorme diversidade a partir da qual houve, em um certo sentido, uma selecção. O resultado é que nós estamos aqui, e isto é apenas uma pequena parte desta grande diversidade que presenciamos. Essa não é a ideia darwinista, mas é uma ideia aparentada. O filósofo Friedrich Nietzsche teve a ideia – eu arriscaria a dizer que ele talvez se tenha inspirado em Darwin – do eterno retorno: a ideia de que todas as possibilidades são concretizadas e que, se o tempo é infinito e a matéria também é infinita, então todas as permutações serão realizadas, não uma só vez, mas um trilião de vezes.
Spiegel – Uma outra ideia de Nietzsche é a de que Deus está morto. Essa é também uma conclusão lógica a que chega o darwinismo?
Dennett – É uma consequência muito nítida. O argumento em favor do desenho inteligente, creio eu, sempre foi o melhor argumento em favor da existência de Deus. E quando Darwin surge puxa o tapete sobre o qual esta ideia se sustenta.
Spiegel – Por outras palavras, a evolução não deixa espaço para Deus?
Dennett – É preciso que se entenda que o papel de Deus foi diminuindo no decorrer dos anos. Primeiramente tínhamos Deus, como você disse, fazendo Adão e todas as criaturas com as próprias mãos, arrancando a costela de Adão e fazendo Eva a partir dessa costela. A seguir trocámos esse Deus pelo Deus que coloca a evolução em movimento. E depois dizemos que nem sequer precisamos deste Deus – o decretador da lei -, já que se levarmos as ideias da cosmologia a sério concluímos que existem outros locais e outras leis, e que a vida surge onde pode surgir. Então, agora não temos mais o Deus criador descobridor de leis, nem o Deus decretador de leis, mas apenas o Deus mestre-de-cerimónias. E quando Deus é o mestre-de-cerimónias e, na verdade, não desempenha mais papel algum no universo, ele ficou diminuído, e não interfere mais de forma alguma.
Spiegel – Então, como é que tantos cientistas naturais são religiosos? Como é que eles harmonizam tal postura com o trabalho?
Dennett – Eles harmonizam essa postura com o trabalho porque não analisam atentamente como se dá esta harmonia. É um truque que todos nós podemos fazer. Temos as nossas maneiras de compartimentar as nossas vidas, de forma confrontarmos as contradições com a menor frequência possível.
Spiegel – Mas essa compartimentação também possui um lado positivo: a ciência natural fala sobre a vida, enquanto a religião lida com o sentido da vida.
Dennett – Tudo bem. Um limite. Mas o problema é que esse limite move-se. E, à medida que se move, a descrição do trabalho de Deus encolhe. Eu, também, me quedo maravilhado com o universo. Ele é maravilhoso. Eu estou tremendamente feliz por estar aqui. Creio que é um grande lugar, apesar de todas as suas falhas. Adoro estar vivo. O problema é: não há ninguém a quem ser grato por isso. Não existe ninguém a quem expressar a minha gratidão.
Spiegel – Mas a religião com certeza nos confere padrões morais e nos fornece directrizes sobre como nos comportarmos.
Dennett – Se a religião fizesse tal coisa eu não acharia que ela fosse uma ideia tão tola. Mas não é isso o que ela faz. Na melhor das hipóteses, as religiões funcionam como excelentes organizadores sociais. Elas fazem do trabalho moral em equipa uma força bem mais eficiente do que ele seria noutras circunstâncias. No entanto, isto é uma faca de dois gumes. Isso porque o trabalho moral em equipa depende, em grande parte, de que você abra mão do seu próprio juízo moral em favor da autoridade do grupo. E, como sabemos, isso pode ser algo extremamente perigoso.
Spiegel – Mas a religião ainda nos ajuda a estabelecer padrões morais.
Dennett – Mas, dessa forma, nós não seríamos moralmente bons apenas para que fôssemos recompensados no céu? Ou seja, Deus pune-nos pelos nossos pecados e recompensa-nos pelo nosso bom comportamento? Eu acho que essa ideia faz de Deus algo como um protector arrogante e ameaçador. Ela é ofensiva, já que sugere que esse é o único motivo pelo qual as pessoas agem de forma moralmente louvável. Por exemplo, será que nós só nos comportaríamos bem para conseguirmos 76 virgens no paraíso? Essa é uma ideia que seria ridicularizada por muita gente no Ocidente.
Spiegel – Então, por que é que praticamente todas as culturas possuem religiões?
Dennett – Creio que a resposta a esta pergunta é parcialmente histórica, no sentido de que as tradições que sobrevivem desenvolvem adaptações para sobreviverem. Assim, as próprias religiões são fenómenos culturais extremamente bem projectados que evoluíram para sobreviver.
Spiegel – Como uma espécie biológica.
Dennett – Exactamente. O projecto de uma religião é completamente inconsciente, exactamente da mesma forma como o projecto dos animais e plantas é completamente inconsciente.
Spiegel – As religiões bem-sucedidas possuem traços em comum?
Dennett – Todas elas precisam de possuir características que prolonguem a sua própria identidade – e muitas dessas características são na verdade interessantemente similares àquilo que encontramos também na biologia.
Spiegel – Poderia dar um exemplo?
Dennett – Muitas religiões tiveram início antes que houvesse escrita. Como é que se obtém preservação de alta-fidelidade de textos antes que existam textos? Os cantos e recitações grupais são mecanismos eficientes para a manutenção e a disseminação de informações. E temos também outras características, como a necessidade de garantir que alguns aspectos da religião sejam realmente incompreensíveis.
Spiegel – Porquê?
Dennett – Porque assim as pessoas têm que cair na memorização rotineira. A própria ideia da eucaristia é um exemplo adorável: a ideia de que o pão é o símbolo do corpo de Cristo, e de que o vinho é o símbolo do sangue de Cristo, não é suficientemente empolgante. É necessário que a ideia se torne estritamente incompreensível. O pão é Cristo, e o vinho é o seu sangue. Só então a ideia atrairá a atenção dos seguidores. Depois disso ela vencerá na competição com outras ideias mais entediantes, simplesmente porque o fiel não consegue deixar de pensar nela. É algo semelhante ao que ocorre quando temos uma dor de dente, e não conseguimos afastar a língua do dente dolorido. Todo o bom muçulmano deve orar pelo menos cinco vezes por dia, não importa o que aconteça.
Spiegel – Você também vê nisso uma estratégia evolucionária para manter a religião viva?
Dennett – É bem possível. O biólogo evolucionário israelita Amotz Zahavi argumenta que aqueles comportamentos “caros” – que são difíceis de serem imitados – são os melhores para serem passados às gerações seguintes, já que os sinais “baratos” podem ser, e serão, falsificados. Esse princípio dos comportamentos caros é bem conhecido na biologia, e está presente na religião. É importante fazer sacrifícios. O “custo” do comportamento é uma característica com a qual o indivíduo não deve tentar interferir, já que isso implica riscos. Se os imans se reunissem e decidissem remover essa característica eles estariam prejudicando uma das adaptações mais poderosas do islamismo.
Spiegel – Usando este tipo de argumentação, você é capaz de prever que religiões serão vitoriosas?
Dennett – Os meus colegas Rodney Stark e Roger Finke pesquisaram porque algumas religiões se disseminam tão rapidamente, e outras não. Eles estão a adaptar a economia do campo da oferta a esta questão e têm dito que existe uma espécie de mercado ilimitado para aquilo que as religiões podem fornecer, mas apenas se elas forem caras. Assim, têm uma explicação para o facto de as religiões protestantes muito brandas e liberais estarem a perder adeptos, enquanto aquelas mais extremadas e intensas atraem novos membros.
Spiegel – Você tem uma explicação para o facto de a crença no desenho inteligente ser mais disseminada nos Estados Unidos do que em qualquer outro lugar?
Dennett – Não, infelizmente não. Mas posso afirmar que a aliança entre religiões fundamentalistas ou evangélicas e a política de extrema-direita constitui-se num fenómeno muito problemático, e que essa é certamente uma das razões mais fortes para a disseminação dessa crença no país. O que realmente assusta é o facto de muitas dessas pessoas realmente acreditarem que a segunda vinda está para acontecer – a ideia de que o armagedão é inevitável, de forma que nada faz muita diferença. Para mim isso é uma irresponsabilidade social do mais alto grau. É assustador.
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Para Zero Hora
Há clérigos que não acreditam em Deus? Essa pergunta, que poderia ter sido o ponto de partida de uma reportagem jornalística ou de um romance, serviu de mote para um artigo científico intitulado Preachers Who Are Not Believers (Pregadores que Não São Crentes) publicado na edição de março da revista americana Evolutionary Psichology. Um de seus autores, o filósofo e psicólogo Daniel Dennett, foi a campo entrevistar homens e mulheres que, depois de uma vida inteira dedicada a comunidades de fiéis, deram-se conta de que haviam perdido a fé. O texto revela as angústias desses pregadores que, apesar da descrença, não abandonam o púlpito.
Filho de um agente de inteligência e de uma jornalista, Dennett é um dos expoentes do neoateísmo, corrente que, além de sustentar a não-existência de Deus, recorre a instrumentos de comunicação de massa, como outdoors, para propagar suas ideias e promove uma crítica ácida de instituições como a Igreja Católica. O livro mais conhecido de Dennett é Darwin’s Dangerous Idea (A Idéia Perigosa de Darwin), inédito no Brasil, foi publicado em oito países e está prestes a ganhar versões em húngaro, japonês e chinês. Nesta entrevista, concedida por e-mail, ele explica suas ideias:
Zero Hora – O ateísmo está se expandindo? Por quê?
Daniel Dennett – Sim, está. Acredito que quatro livros surgidos num curto período de tempo – O Fim da Fé, de Sam Harris (Tinta da China, 2007), Deus, um Delírio, de Richard Dawkins (Companhia das Letras, 2007), Deus Não É Grande, de Christopher Hitchens (Ediouro, 2007), e meu livro, Breaking the Spell (Quebrando o Feitiço, inédito em português), encorajaram muitos ateístas a serem menos reticentes sobre suas opiniões. Isso também encorajou outros a repensar suas crenças. Duvido que muito mais pessoas tenham se tornado ateístas; penso que elas estão apenas admitindo que foram ateístas por anos.
ZH – Um mês depois do 11 de Setembro, o romancista britânico Ian McEwan escreveu: “Dissabor com qualquer religião”. O revival ateísta é um efeito colateral do 11 de Setembro?
Dennett – Duvido que o 11 de Setembro tenha muito a ver com isso, embora a resposta do governo George W. Bush ao 11 de Setembro tenha sido extremamente desordenada. Foram as insinuações de teocracia no governo Bush que me provocaram, por exemplo, a deixar de lado meus outros projetos e escrever meu livro.
ZH – A religião é, em si, má?
Dennett – Não, ou pelo menos apenas certa religião é má em si mesma. A maior parte é muito benigna, mas isso confere “coloração protetora” às variantes más, que, por serem religiões, são consideradas acima da crítica por muitas pessoas.
ZH – Imaginar que não exista religião é uma questão supérflua?
Dennett – Os Beatles já nos convidaram a imaginar isso. (O verso “Imagine... que não há religião também” é da canção Imagine, de John Lennon, e foi composta quando ele era ex-integrante dos Beatles.) Eu duvido que a religião vá simplesmente se extinguir. Penso que uma hipótese muito mais realista é que as religiões vão sobreviver se transformando em instituições mais aceitáveis.
ZH – O escândalo de abusos sexuais na Igreja Católica seria diferente se tivesse ocorrido num contexto não-religioso?
Dennett – Claro! Se, por exemplo, fosse descoberto que uma multinacional como a IBM, a Shell ou a General Motors tivessem acobertado esses crimes por seus empregados, os líderes dessas companhias estariam todos na prisão cumprindo longas penas. Penso que deveríamos julgar a Igreja Católica pelos mesmos padrões com que julgamos fabricantes de automóveis. No mínimo, deveríamos julgá-los por padrões elevados, uma vez que seus representantes têm tão extraordinárias posições de confiança.
ZH – O cientista britânico Richard Dawkins propôs a prisão do papa Bento XVI por “crimes contra a humanidade” em razão de seu suposto acobertamento dos escândalos. Qual é a sua opinião sobre isso?
Dennett – Creio que dificilmente será uma campanha bem-sucedida, mas aprovo-a de todo o coração.
ZH – Fazer campanha pelo ateísmo com anúncios em ônibus, como ocorre na Grã-Bretanha, é correto? Não seria melhor manter o debate no campo acadêmico e cultural?
Dennett – Religião não é apenas um fenômeno acadêmico. Creio que é muito saudável ter o público em geral informado sobre a variedade de opiniões sobre religião sustentadas por seus vizinhos e concidadãos. Os anúncios que vi eram de bom gosto, muitas vezes divertidos, leves. Eu os aprovo. Quem se sentir ofendido deveria ser submetido a algum tipo de ajuste de conduta. Não têm o direito de ter suas próprias opiniões mais respeitadas do que as opiniões de outros cidadãos.
ZH – Há um grande número de cientistas efetivamente engajados no ateísmo militante. O historiador britânico Eric Hobsbawm escreveu que cientistas geralmente não se preocupam com questões políticas e filosóficas, a menos que percebam algum risco a seu próprio trabalho. O senhor acredita que é esse o caso atualmente?
Dennett – Sim, cientistas têm coisas melhores a fazer com seu tempo e energia do que se engajar em atividades políticas em favor do ateísmo. Se pessoas que acreditam em Deus mantivessem suas opiniões e práticas restritas a seus próprios grupos e não tentassem impô-las aos outros, não teríamos de nos engajar nesta atividade política.
ZH – A obra de Darwin ainda é perigosa do ponto de vista religioso?
Dennett – Não apenas do ponto de vista religioso. Há muitas pessoas na academia que não são religiosas no sentido tradicional mas que consideram a ideia da seleção natural profundamente repugnante. Isso as torna quase histericamente contrárias à aplicações do pensamento darwiniano em seus próprios campos. Isso pode se tornar perigoso.
ZH – Qual será a situação da religião na metade deste século?
Dennett – Se eu soubesse – se alguém soubesse –, não teria escrito meu livro, que apela por um novo estudo científico da religião, especialmente para nos dar uma fundação mais substancial na qual basear uma resposta a essa importante questão.
luiz.araujo@zerohora.com.br
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